BOCAGE E SUA POESIA PORNÔ
Por Nicéas Romeo Zanchett
Manuel Maria de Barbosa du Bocage, nasceu em lar português organizado e próspero em 15 de setembro de 1765, em Setúbal. Seu pai, José Luiz Soares Barbosa, bacharel em Cânones, que trocara a magistratura pela advocacia, e cujo exercício sabia humanizar com espirituosas poesias satíricas e já com tendências pré-românticas. Sua mãe, D.Maria Joaquina Xavier du Bocage, era filha do francês Gillet Le Dous (ou Hedois) du Bocage, que atingiu na Marinha portuguesa o posto de vice-almirante e que com certeza legou ao neto o gosto pelos "vastos mares".
A lado do seu irmão Gil e de suas quatro irmãs, Bocage teve uma educação esmeradíssima. Ainda criança, já dominava o latim, o francês, o italiano e o espanhol. Aos oito anos, assistindo o pai,em Lisboa, na procissão de cinzas, aí realizou sua primeira sátira:
"Fui ver a procissão de São Francisco,
A que o vulgo chama de cidade.
E suposto o apertão foi raridade
Que, indo em carne, não visse em cisco."
Depois da morte da mãe, quando ele tinha dez anos, sua vida sofria a primeira mudança. Com essa perda se desfaz a atmosfera que lhe propiciava os estudos, e muito cedo, aos 14 anos, sem maiores explicações à família, ele assenta praça no regimento da Infantaria, aquartelando-se em Setúbal. O pai, com certeza desejando-lhe melhor futuro, se curva ante a sua decisão e, quatro anos depois, não se sabe se por causa de sua impulsividade ou pela iniciativa do pai, o jovem Manuel transfere-se para Lisboa, onde passa a frequentar a real Academia de Marinha.
Seria ideal, segundo os desejos dos familiares, ele dar continuidade à tradição do avô francês. Como marinheiro, satisfaria ele ao mesmo tempo os desejos e tradições da família e as tendências do temperamento irrequieto.
Provando os prazeres da capital, o jovem se entrega ás dissipações boêmias, nas reuniões nos cafés de Lisboa.
Em pouco tempo admite ser um amante da vida caserna e em 1784, por suas faltas cada vez mais constantes, é dado como desertor. E, longe da rígida disciplina da academia, dá asas à imaginação e começa provocar, apesar da pouca idade (19 anos), a estima e admiração por parte da intelectualidade boêmia de Lisboa.
Até sua partida para a Índia, ele teria muito tempo para praticar a sua mordacidade, encolerizando os frades, que só amava naos altares, nas competições dos pátios dos conventos, onde enfeitiçava freiras com suas graças de improvisador de versos e suas práticas morais e imorais de "devoto" de muitas moças num só momento.
O ambiente em que Bocage vivia era, oportunamente, propício a este viver ao acaso. Não haveria na Europa lugar mais alheio a preocupações maiores, como muito bem podia se saber pela literatura das disputas literárias a que os artistas se entregavam, tanto como as observações que liam nas gazetas a respeito da sociedade daquele tempo.
Moço feito, Bocage era magro, moreno, macilento e de aspecto sombrio, porém mais para boa-pinta do que para feio. O apuro dos modos demonstrava a sua origem nobre, reafirmada pelas armas e pela toga. Sua testa era ampla, a boca rasgada, os lábios finos e olhos azuis brilhantes e vivos; e a cabeleira, eternamente revolta, acentuava-lhe o ar de inegável boêmio que era. Ele próprio, sobre sua aparência, escreveu:
"Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão de altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio e não pequeno,
Incapaz de assistir num só terreno;
Mais propenso ao furor do que a ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de moças mil num só momento,
E somente no altar amando os frades;
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdade,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Com a leitura deste auto-retrato, dá para perceber que Bocage não se ligava muito em sua aparência física. O talento, entretanto, era motivo de seu orgulho.
Por se preocupar tão somente com "coisas do espírito", ele aceitou jantares, hospedagem de favor, proteções de ocasião, e já nesta envolvia-se em aventuras sedutoras e eróticas que são por ele contadas em bom português:
"Num capote embrulhado, ao pé de Armia,
Que tinha perto a mãe o chá fazendo,
Na linda mão lhe foi (Oh céus!) metendo
O meu caralho, que de amor fervia...
Nos últimos versos do soneto, o vate e a donzela foram apanhados em flagrante pela mãe da moça, que não hesitou em distribuir bofetadas na filha e no poeta.
Mais feliz nos botequins, entre a arcádia e o clube revolucionário, ele vivia a decantar suas musas.
Exitado pelo álcool e o tabaco, que consumia em doses industriais, divertia-se com seus improvisos. Dois botequins eram os preferidos de (Elmano Sadino) seu pseudônimo, e de seus amigos de beberragens: um era o Botequim do Nicola e o outro o Botequim das Parras, também chamado Arcádia das Parras, porque a sala principal era pintada de ramos de videira, de onde pendiam cachos. Ambos os botequins localizados no lado ocidental do Rossio, área conhecida na época como Agulheiro dos Sábios. E lá ficavam os intelectuais boêmios e toda uma cambada de desocupados, bebericando, recitando versos, ouvindo e discutindo as mais palpitantes novidades que iam pelo mundo. Madrugadas e madrugadas eram dissipadas pela malta que abitava aquelas tabernas. Sempre, entretanto, para o desassossego daqueles jovens baderneiros, surgia a figura do Intendente de Polícia Diogo Inácio de Pina Manique. Enérgico e incansável, ele se perdia na loucura de disciplinar tal plêiade. Mas Pina Manique, em sua própria ineficiência, era o estímulo principal para o frenesi dos jovens boêmios.
Em 1786, Bocage obtém, por mercê régia, a nomeação de guarda-marinha, que não tinha alcançado por direito de escolaridade regularmente cumprida. Em abril do mesmo ano, parte em viagem com destino à Índia na nau Nossa Senhora da Vida, Santo Antônio e Maria Madalena. Vinha com uma escala pelo Rio de Janeiro, para buscar o governador da Capitania de São Paulo, Francisco da Cunha meneses, nomeado a partir daquele ano governador e capitão general da Índia.
Deixando em Portugal a mulher amada, a sua Gertrúria, ele lamenta em versos a sua ausência, a falta que ela lhe faz. As atrações da viagem, entretanto, amenizam-lhe as dores do coração e finalmente ele chega ao Rio de Janeiro, onde foi muito bem recebido pelo governador Luis de Vasconcelos, protetor das artes e das letras. Por aqui o poeta se deslumbra com os olhos negros e as formas voluptuosas das cariocas e não se furta a entregar-se ás mais libidinosas aventuras, que talvez lhe tenham inspirado esse quarteto:
" Quantas pediram, mas em vão, piedade
Encavadas por mim balbuciantes!
Ficando os seios alvejantes
Que hemorroidas não fiz nesta cidade!"
E do Brasil ele foi para Goa, na companhia de Cunha e Meneses, que não ficou insensível à simpatia e ao talento que o poeta irradiava.
Sua chegada a Goa não foi das melhores. Seu temperamento extrovertido, habituado a vibrar em companhia, em resposta aos aplausos de admiração dos patrícios, o fez fica chocado com a indiferença dos orientais. Daí Bocage passou a exprimir a sua infinita tristeza e solidão, por estar num mundo completamente alheio ao seu:
"Aqui vai sempre a mais minha amargura,
Aqui, pela saudade envenenado,
Como espectro acompanho a noite escura.
Aqui ninguém me entende,(hó! negro fado!?)
Nem deuses, nem mortais, ninguém me entende,
Tão molesto se faz o desgraçado."
Bocage foi um poeta de satíricas piadas de baixíssimo calão. Com sua forma peculiar de expressão, despia o manto do academicismo e, como seu inspirador, o nunca assaz louvado Camões, entregava-se à maior libertinagem.
Os literatos portugueses do século XVII, travestidos em pastores, seguindo á risca o modismo arcaico, exaltavam insuportáveis sonetos, naufragando seu pequeno país em um oceano de má versalhada.
Bocage, o poeta pornô foi, acima de tudo, um rebelde inovador e crítico do seu tempo.
Nicéas Romeo Zanchett
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